sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Hoje

O meu tio é um homem enorme. Leva-me à praia e tapa-me as ondas nas praias da Costa, com o peito aberto virado para o horizonte a desafiar cristos-rei e adamastores, e eu ali atrás dele com a minha irmã, rindo-nos do medo e de as ver passar já partidas em pedaços numa espuma inócua de champô-amaciador.

O meu tio apanha um eléctrico amarelo (que deixou de passar por ali) e aparece lá em casa com livros de quadradinhos usados (chama-lhes mosquitos), e deles se abrem mundos a preto e branco, com heróis de espada pronta para a luta (vim a saber que descansam os braços quando viramos a página). Traz-me brinquedos e senta-se a fazer-me companhia com um sorriso largo, enquanto eu vou sonhando que voo dentro de um helicóptero azul. O meu tio enche a casa de chocolates da vaquinha, comprados nas bancas de rua e cebolas e batatas e garrafas de azeite, que descobri serem fundamentais. Mas os chocolates da vaquinha são doces e trazem amendoins.

O meu tio é um homem enorme, porque gosta das coisas simples. Nada tem que não deixe de ser seu, porque é como alguém que só olha para fora, sem saber de si. Casou-se muito tarde e perdeu a mulher muito cedo. Hoje (o hoje dele é enorme porque é a soma dos dias que já se foram embora com os que hão-de vir) tem de suportar o tecto do tempo como um Atlas, vergando as costas, resistindo ao peso do seu mundo que se desfaz em grãos de areia.

Mas nunca deixa de ser um homem enorme e eu gosto de ir ter com ele a correr, e numa hora de almoço condensar estes passados e presentes e receber dele sempre aquele sorriso largo a dizer que gosta de me ver.

Aborrece-me ele ter nascido há tanto tempo e a idade estar tão ansiosa por engoli-lo e tirá-lo de mim.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Sobre o além

É ter em rasa conta a natureza humana, supor que o além nos domina o intento e a façanha, para o mais e para o menos, para o bem e para o mal. É ter em escassa consideração a dimensão do poço abrupto do ser consciente, único, intransmissível, finito no tempo, infinito na percepção.