domingo, 11 de março de 2018

Um ano

O meu pai morreu. O coração cansou-se do peso que ele transportava diariamente nos ombros. Vergava-o literalmente e em casa tínhamos de o lembrar, a cada manhã, onde pôr os pés para se levantar, e a dar os primeiros passos. Ou então era ele que nos lembrava, quando às vezes o fazia sozinho, a porta da casa de banho aberta, cheia de luz, a da lâmpada e a dele, a fazer a barba cuidadosamente ou, ainda ao espelho, aplicando golpes de pugilismo de elevada nota artística a um inimigo imaginário. Escondia assim nestas ironias a sua raiva, o seu desespero, o de não ter acesso garantido ao corpo e à memória. Às vezes distraído, o corpo enrolava-se numa espiral de argonauta, numa lenta implosão. Eu a puxar-lhe os ombros para trás, olha em frente paizinho, isso. Depois descíamos a rua naquela escala de tempo que, aqueles que não conhecem o amor, diriam lenta. Pedíamos café ao senhor Carlos, entre eles uma piada secreta, sempre a mesma e sempre os mesmos sorrisos, depois sentávamo-nos a conversar sem palavras, ele sempre de olhos vivos a ver o mundo a acontecer, ficando alegre com a alegria dos outros, que era também a dele. Dizia que a vida às vezes pode ser mais longa do que pensamos e é preciso fazer as escolhas acertadas, no fim e como no cinema tinha de ficar uma história bem contada, apenas isso. Dizia poucas coisas mas guardo muitas na memória, via-o sempre à distância, o meu filósofo da ação, e eu o seu filho pequeno buscando aprovação. Andou dez anos com alguém às cavalitas, parece que se chamava Parkinson, palavra que ele nunca se lembrava e eu quero esquecer todos os dias, como o de hoje, em que me apetecia era andar a passear devagarinho com ele no Jamor.

domingo, 5 de março de 2017

Fugas

Tenho nos dias passados as horas contadas em segundos perdidos, e assim me quedo numa tristeza genérica, como se o eu que talvez seja fossem vários e de nenhum deles restasse memória vívida. Como se a névoa do esquecimento se tornasse definitiva bruma e o futuro não passasse de uma página virada há muito, nimbado, ocasionado, perdido. Tenho nos dias dos mundos possíveis a sensação do desejo da fuga e no mundo actual o desejo da sensação de qualquer coisa, o desejo de qualquer coisa para além de uma broa quente e da manteiga que nela derrete. O desejo de pintar o branco todo de uma cor qualquer, de fugir com o balde da tinta na mão e deixar cair a trincha ensopada com a sensação de ser perseguido. (tropeçar) A sensação de desejar arrancar toneladas de verde à dentada e cuspi-lo para lá dos montes visíveis, enfeitar os prédios altos com perucas ridículas de ervas e plantas mortas, enxovalhar a cidade inteira no desdém da sua inanimidade. Cidades mortas de gente morta dentro de ecrãs, dentro das suas jaulas religiosamente pagas em cada um dos doze avos em que dividem as suas setenta vidas. Uma de cada vez com direito a balancete, champanhe e orçamentos rectificativos. Como se o tónus da vontade urgisse da festa, pipoca utópica e atarantada projectada dos esgares, gargalhadas e afins euforias. O desejo de qualquer coisa. A sensação de qualquer coisa desejada. A fuga da sensação.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Bestiário do Julio

Um homem que vomita coelhinhos que partem jarras, coladas mais tarde com cola inglesa. Uma mulher censurada pelo olhar de um autocarro inteiro e um homem que também, mas mais tarde, assim como mais tarde o motorista lhe tenta bater, por razão nenhuma, acabam por sair os dois e ele compra flores finalmente. Pessoas que criam mancúspias. Dois irmãos que perdem a sua casa progressiva e beneplacitamente. A mim este Cortázar no seu "Bestiário" parece-me um António Lobo Antunes simpático na frase, mais delirante no tema que no discurso, mas ainda assim com as frases penduradas em penhascos e quem lê às vezes enrola-se na vertigem da ignorância e volta atrás para buscar uma corda antes de se atirar lá para baixo. Venha o próximo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Lê Séneca

"Lê Séneca", dizia o António Feio ao José Pedro Gomes, ou as suas personagens uma à outra. António Feio no seu modo 'estóico' de encarar o infortúnio com um sorriso cândido, não fez mais que aumentar a pressão das veias do seu amigo, furioso pela sua aquisição de um quadro branco com riscas brancas, um suposto ícone de contemporaneidade. E na altura, a peça chamava-se "Arte", ri-me com a frase, encostado à minha rica cultura de aluno de belas-artes, pois mandar alguém furioso ler um filósofo é uma tirada já de si engraçada e é obrigatório rirmo-nos de piadas com nomes de autores consagrados. Não li Séneca mas falaram-me dele, mais concretamente o Alain de Botton, e então revi a peça no Youtube até encontrar a tirada do Feio e perceber porque me tinha rido naquela altura. Confere, foi mesmo engraçado.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

"Eusa" no Coliseu

As bombas tinham cessado e na cidade ainda a fumegar emergia a alegria de uma sala de espetáculos. Casa cheia, lugares ocupados, os de pé e os sentados, mesmo os que mal deixam ver o palco. As cadeiras rangem ao menor movimento, o chão aqui e ali remendado atira-nos pequenos protestos metálicos à passagem dos últimos espetadores. Nos corredores dos camarotes, acima das nossas cabeças, de quando em vez um trote apressado, talvez soldados atentos ainda de dedo quente e botas ligeiras. Nas costas o ar corre como se houvesse uma porta aberta por cada cadeira. Ao fundo do palco um homem a tentar não falar, mas os seus dedos sem conseguir parar, num martelar enrolado, crescente, melodioso (mel + odioso, que junção estranha para uma palavra tão doce, antes fosse mel + amável, onde no final talvez sem acento ficasse melamavel). Atrás de Yann, o seu nome, uma fita rola e depois uns sons a servir-lhe de fundo ao pianar. Do lado direito de Thiersen, seu apelido, dois minúsculos pianos de brincar onde ele toca a sério para descansar do piano grande e do violino onde rasga meia dúzia de notas de vez em quando. Uma coisa de cada vez, analogicamente, sem camadas, sem maquilhagem, como quem come fruta das árvores ainda com casca, os pingos a escorrer da boca e a brisa a arrepiar o espírito. Voltou talvez três vezes a ver se calava as palmas até que o dono da sala nos calou a todos com as luzes acesas.
Afinal não foi um concerto no pós II Guerra, foi mesmo em 2016, ali no Coliseu, uma espécie de fantasma ignorando a morte. De resto as centenas de pequenos ecrãs acesos, durante a escuridão melancólica do alinhamento, não se cansaram de me lembrar da época em que vivo. Ao contrário de quem gravou o som e a imagem e partilhou a sua estupenda experiência nas timelines mundiais, eu terei de recorrer apenas à minha memória. Yann Tiersen Live Solo Tour

terça-feira, 6 de setembro de 2016

S de sobreviver

Conhecer alguém antes de a conhecer, não há outra maneira de o dizer. "Não é uma questão de ultrapassar o luto: há que incorporar a perda" diz Helen McDonald, uma talentosa praticante (e cara colega) da misantropia, no bom sentido do termo, e na linha dos que para perceber os Homens, regressam ao mais profundo da natureza, ao estado selvagem que preside em particular nos predadores. Uma mulher de quarenta anos lançada na orfandade de pai, que ensaia e estuda a morte e o desapego com Mabel, um açor, máquina implacável de matar coelhos. Mabel morre também, como o seu pai, e a cada morte, mais do que o vazio, fica qualquer coisa de novo, uma espécie de paradoxo com o qual se pode enfrentar o medo: a incorporação da perda. A tomada de consciência do peso transformador do desaparecimento dos alvos do nosso amor. E a escolha de, perante esse peso, olhar para fora, para o mundo, como se ele estivesse todo dentro de um pensamento, à boa maneira dos solipsistas. E assim sobreviver. Comentário a leitura da entrevista a Helen McDonald publicada na revista LER.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Murakami vs Jorge Palma

O Jorge Palma diz, sedento e convicto, que o amor dele existe, a galope nos seus trinta mil cavalos, mas o senhor Haruki duvida de tudo o que vê e sente. O seu amor aparece e desaparece num bar em Tóquio ao som de “Star Crossed Lovers” de Duke Ellington, até desaparecer de vez – ou talvez tenha sido o mundo a desaparecer inteiro de dentro da sua etérea Shimamoto. Só as marcas lá ficaram, as de dentro porque as outras não se deixam ver nem ser provadas. Murakami é para se ler com banda sonora e para nos acompanhar depois de acabarmos de ler cada história, deixando-nos a dúvida: não estaremos nós a ser lidos por ele?