terça-feira, 27 de abril de 2010

Para alguém que perdeu uma árvore

A árvore subiu muito alto
Seus ramos rasgando as nuvens
Espalhando as folhas sem sobressalto

Um dia não havendo mais espaço
Nem tempo que lhe valesse
Desapareceu em colapso

Mas seus ramos que as nuvens rasgavam
eis que raizes agora se tornam
e delas novos ramos brotam

E das antigas folhas onde as estórias se espraiavam
de uma assentada retornam
e em novos verdes ecoam

Assim a "árvore que tomba" cedo se levanta
pois a seiva que deixou na vida pulsando
a sua senda vai continuando

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Bobi

Aqui estou eu na minha velha beira-mar, da desdita e periférica Cruz Quebrada. Presenteada anos a fio pelo fluxo imundo do esgoto das suas terras irmãs. Com o seu pontão quebrado, numa meia arrogância dos seus avançados blocos de pedra, ilhas de vanguarda, habitadas por gaivotas e persistentes pescadores à linha.
É um banco de memórias da revolta dos mares, cofre dos despojos dos homens e da natureza.
O último dos seus pescadores (daqueles de barcos e redes e mãos gretadas e corpo moreno e rijo e fome) abandonou a sua casa, uma de várias, tolhido por uma partida que o coração lhe pregou. Cumprimenta-me sempre com a mão esquerda, porque a outra se entregou à imobilidade, mas não regateia um sorriso largo quando nos cruzamos numa paragem de autocarro, ou no túnel que leva à estação dos comboios (que nos levam a praias que não foram esquecidas).
A Ti’Ana tratou-lhe do Bobi na sua ausência. Conheci o Bobi há mais de uma década, com as suas mãos-patas enormes sempre prontas para um abraço. Tenho saudades dele, logo à entrada da praia, olhando indiferente os passageiros dos comboios de um dia inteiro. Lá de longe assobiava-lhe (o som é secreto e não vou revelá-lo) e de orelhas em radar esperava-me ansioso, de pulmão cheio, naquele ladrar contido de quem não sabe o que dizer primeiro do tanto que sente. Como eu agora por ele. Nunca o levei a passear, ficava só ali a enchê-lo de festas e palmadas no lombo à camarada, guardados os dois por uma corrente prisional a fazer-me lembrar que a visita era curta, e que me esperavam tarefas e pessoas.

O Bobi esteve ali muitos anos, mesmo quando deixei de andar de comboio, guardião da esquina dos passageiros dos comboios, à espera de um comboio que demorava meses. Há uns meses foi-se embora, mas não como o seu pescador António, abandonou mesmo esta coisa de estar vivo, deixando para trás uma praia inteira, de casas dizimadas pelas tempestades recentes.

Agora só vejo vidros partidos, paredes de alvenaria de tijolo a arreganhar o dente, e a cor em lamentos dispersos agarrada a pequenos pedaços de plástico…