domingo, 19 de setembro de 2010

Lá fora os pequenos demónios
são cordeiros de homens disfarçados
sorrindo doce e alegremente

Lá fora (os pequenos demónios)
levantam o pó dos medos soterrados
numa laboração fremente

Eis que tremem com a descoberta
Brilhos ázimos soltam-se dos seus olhos
Faíscando em ânsias de morte

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

I

O homem vai apertado,
Desce a rua num casaco apertado,
Dá um jeito aos ombros de quando em vez,
Estica os braços incomodado de quando em vez.

O homem cresceu dentro do casaco,
Viveu a vida fechado dentro do casaco,
Lamenta-se esticando apenas o pescoço,
A única coisa que sente liberta é a cabeça ao esticar o pescoço.

O homem chega a casa por fim,
O trabalho de um dia inteiro chegou ao fim,
Larga a mala no chão da sala e suspira abrindo a janela,
Respira o ar que lhe faltou com a cabeça de fora da janela.

O homem despe o casaco que se rasga,
O casaco não aguenta a pressão e é por isso que se rasga,
Fica ali no chão ao lado da mala e o homem dá um jeito aos ombros,
Estica os braços aliviado (e leve) sente que se descontraíram os ombros.


II

O homem tenta dormir mas a luz verde do relógio,
A luz verde e o anúncio do despertar emanam do relógio,
Desliga a ficha e abandona-se cru no horizonte do descanso,
Não sabe se adormece mas sente-se a sonhar em pleno descanso.

O homem há-de acordar e abrir os olhos,
Mas agora, mesmo com o sol que lhe traz riscas de luz aos olhos,
Deixa-se estar entre um mundo e o outro, entre um mundo e o outro,
E não sabe quando acorda se prefere este mundo em que ainda está se o outro*.

Decide por levantar-se e depois de um banho vigoroso entre águas ferventes e outras refrescantes,
Sobe à arrecadação de luzes rasantes e poeiras levantadas e um baú cheio de cores refrescantes,
E fica um dia inteiro a martelar a coser a desmanchar a recomeçar a desenhar a pensar a fazer (e as paredes cheias de planos),
E desce com alegria (!) e come com apetite coisa de trazer saúde e prazer ao estômago e aos olhos que não descansam porque a cabeça fervilha de planos.

Sai para a rua e traz em si uma coisa nova que dispara tiros de cor para os cinzentos da rua das coisas e dos homens,
Traz em si uma coisa nova que é uma arma que mata os homens mas dá cor às coisas da rua e mata mesmo os homens,
Cada vez há menos cinzento cá fora, dos seus olhos, que são a fronteira entre este mundo e o outro, menos cinzento cá fora
E nessa fronteira é como se dois rios corressem, agitados revoltos antagónicos, um correndo cinzento o outro com as cores derramadas cá fora

* Para onde vai se abrir os olhos.

III

O homem nada na cor que a mistura da sua fúria de pintor revelou, esticou o corpo e flutuou abandonado e cansado, pensando que feliz, afinal cansado, por dentro cinzento de cinzas, de coisas que queimando se perderam. As suas mãos amarradas atrás das costas, o sangue que escorre das mãos, que suja quem o ata mas que vive, ao contrário dos que se amontoam nos passeios, nas escadarias, sem cor que não seja a do abandono dos assuntos dos vivos. Afinal em vez de um casaco agora uma coisa de metal que prende arranha e pressiona os ossos dos pulsos. Afinal em vez de liberdade o final.