sexta-feira, 30 de julho de 2010

Remake revisto e ampliado de:

Sessão de cafet no Nicola Gourmet com esboços de anagramas
(Março de 2008)

I
Trago hoje a carga do tédio, sou numa sala d'espera d'ospital, paciente de uma consulta que não marquei. Antes queria o vazio, se o houvesse, que estas peças de puzzle (são tantas) que não encaixam: falta-me a estampa da caixa como guia, falta-me. Sobro-me, eu que nada sou sem amar, sou peça d'artilharia deixada na rua sem guerra que se lhe depare, num país-país de paz-tédio. Um país de ninguém-luta, medo-casa. Sobro-me no vento das coisas, abstracto sopro sem direcção que proveito ou descoberta traga, sou vela enfunada para a frente atirada sem mapa onde pousar o compasso. Capitão de astrolábio inútil com este céu carregado (podia chover...). Passo tempo num café de um país-não-paris: oh tremor tectónico de outras eras e paragens, abana-me o copo de água das pedras, faz-me olhar para fora deste espécie-mundo, fossa pútrida dos compartimentos sociais, carro, apartamento, quarto (onde estão os terceiros se nem a mim me encontro?).

II
Cromossoma soma corpo
subtrai cromo sobra (s)soma - diminuiu
moço (se ç=ss) se cromo fosse
sem corpo perduraria num qualquer moma
em maço (se ç=ss) ou só (se s só fosse)
macromoço com ligeiro croma

III
Nicola por vezes cola
ou o nico à sacola ou essa ao nico
se tenta e com força descola fica
na sacola um naco do nico que
de tão laico fica sem clã nem lona na sacola

IV
Pedras salgadas com empadas sem sal
nas galas ou festas de pouca monta onde
pululam ladras nas salas
roubando preciosas gema-pedras
comendo regaladas anchovas em salga
com nutritivas saladas
em pé ou refasteladamente sentadas

V
Antes queria uma água por favor, estou assim enjoado - comi muito ao jantar: o galão, já se vê, seria um peso. Além de que uma aguinha fica bem e paga a renda do ateliê de escrita. Queria uma água, um nada por favor, quero nada, por isso dê-me a aguinha natural, quanto é? noventa e cinco cêntimos, aqui estão, posso sentar-me? A garrafa, ponha na mesa, fica bem, dá-lhe cor e dá-me gosto depois repetir a sinfónica cascata no copo de vidro, maestro verta um allegro, isso vivacci, agora ma non troppo com cuidado, não pareça um xixi, isso assim sim maestro, um aplauso para si, ora guarde esta gorjeta: os cinco que me sobraram dos cem que lhe entreguei. Pelo concerto ora essa, aceite por quem é, com os cumprimentos do meu saldo a descoberto.

VI
Fica no caderno, tenho que fazer
(onde está o caderno?)
No andar de cima soa um piano, sem dedos de homem ou mulher. As teclas abatem-se no ângulo e na intensidade precisas da tristeza. De vez em quando o silêncio amplia-se e ensurdece-me, mas logo vem a pungência sonora lembrar-me da essência teimosa da vida que, por mais ténue e fugaz que aparente, sempre liberta a sua nota ainda que tímida. (No andar de cima não toca nada, só o silêncio…)

Mas podia tocar…

(Ser)ÓDIO

Não tendo nada mais edificante para pensar,
Ia o Sol se perdendo nas incomensuráveis alturas celestes,
E reverberando a terra em anúncios de lazer,
Dizia eu que assim mergulhado num torpor destes,
Me pus sem querer nem premeditar: a odiar.

E de um sentimento ou concepção genéricos,
Saltei para o perfilar dos objectos da minha eventual repulsa,
Procurando nos meus vórtices históricos,
A revolta que às vezes em mim pulsa!

E fui, com algum esforço confesso, na lama do desagrado,
Digo eu encontrando quem, por actos por mim menos esperados,
E tendências mais assumidamente vis,
Se sentasse no trono dos mafarricos e malfadados,
E se dispusesse, por impossibilidade de defesa*
À dupla serventia d’alvo e condenado.

De palavras afiadas, molhadas no mais desprezível veneno verbal,
Dispostas numa mesa emprestada por um retirado algoz,
Aborreci-me da tarefa seguinte sem prova experimental,
Pareceu-me pintura fraca a visão do indefeso,
Escorrendo as lágrimas e a urina do desespero.

Deixei assim a mesa posta num museu recém estreado,
Cortei as cordas do prisioneiro e abandonei a sala.


* (face à tirania da memória)