domingo, 11 de março de 2018

Um ano

O meu pai morreu. O coração cansou-se do peso que ele transportava diariamente nos ombros. Vergava-o literalmente e em casa tínhamos de o lembrar, a cada manhã, onde pôr os pés para se levantar, e a dar os primeiros passos. Ou então era ele que nos lembrava, quando às vezes o fazia sozinho, a porta da casa de banho aberta, cheia de luz, a da lâmpada e a dele, a fazer a barba cuidadosamente ou, ainda ao espelho, aplicando golpes de pugilismo de elevada nota artística a um inimigo imaginário. Escondia assim nestas ironias a sua raiva, o seu desespero, o de não ter acesso garantido ao corpo e à memória. Às vezes distraído, o corpo enrolava-se numa espiral de argonauta, numa lenta implosão. Eu a puxar-lhe os ombros para trás, olha em frente paizinho, isso. Depois descíamos a rua naquela escala de tempo que, aqueles que não conhecem o amor, diriam lenta. Pedíamos café ao senhor Carlos, entre eles uma piada secreta, sempre a mesma e sempre os mesmos sorrisos, depois sentávamo-nos a conversar sem palavras, ele sempre de olhos vivos a ver o mundo a acontecer, ficando alegre com a alegria dos outros, que era também a dele. Dizia que a vida às vezes pode ser mais longa do que pensamos e é preciso fazer as escolhas acertadas, no fim e como no cinema tinha de ficar uma história bem contada, apenas isso. Dizia poucas coisas mas guardo muitas na memória, via-o sempre à distância, o meu filósofo da ação, e eu o seu filho pequeno buscando aprovação. Andou dez anos com alguém às cavalitas, parece que se chamava Parkinson, palavra que ele nunca se lembrava e eu quero esquecer todos os dias, como o de hoje, em que me apetecia era andar a passear devagarinho com ele no Jamor.