domingo, 5 de março de 2017

Fugas

Tenho nos dias passados as horas contadas em segundos perdidos, e assim me quedo numa tristeza genérica, como se o eu que talvez seja fossem vários e de nenhum deles restasse memória vívida. Como se a névoa do esquecimento se tornasse definitiva bruma e o futuro não passasse de uma página virada há muito, nimbado, ocasionado, perdido. Tenho nos dias dos mundos possíveis a sensação do desejo da fuga e no mundo actual o desejo da sensação de qualquer coisa, o desejo de qualquer coisa para além de uma broa quente e da manteiga que nela derrete. O desejo de pintar o branco todo de uma cor qualquer, de fugir com o balde da tinta na mão e deixar cair a trincha ensopada com a sensação de ser perseguido. (tropeçar) A sensação de desejar arrancar toneladas de verde à dentada e cuspi-lo para lá dos montes visíveis, enfeitar os prédios altos com perucas ridículas de ervas e plantas mortas, enxovalhar a cidade inteira no desdém da sua inanimidade. Cidades mortas de gente morta dentro de ecrãs, dentro das suas jaulas religiosamente pagas em cada um dos doze avos em que dividem as suas setenta vidas. Uma de cada vez com direito a balancete, champanhe e orçamentos rectificativos. Como se o tónus da vontade urgisse da festa, pipoca utópica e atarantada projectada dos esgares, gargalhadas e afins euforias. O desejo de qualquer coisa. A sensação de qualquer coisa desejada. A fuga da sensação.

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